“Uma síntese admirável do espírito brasileiro.” (Odilo Ribeiro Coutinho)
“Uma síntese admirável do espírito brasileiro.” (Odilo Ribeiro Coutinho)
Em 1962, quando decidiu fazer na Oca a exposição “O Móvel como Objeto de Arte”, Sergio produziu uma poltrona que vinha projetando havia um ano e que ganhou o nome de Mole. A peça, segundo ele, não foi bem recebida na época. Com o humor de sempre, ele descreveu a reação geral: “Se os desenhos que eu fazia eram considerados ‘futuristas’, aquilo, então, não teria qualificação. Um pastelão de couro sobre aqueles paus era demais. Os curiosos de vitrine diziam: pra cama de cachorro está muito caro.” Outros chamavam de ovo estrelado.
A Mole amargou uma desanimadora falta de interesse e ficou esquecida durante um ano na vitrine da Oca. “Meus sócios, em vez de me bater, quiseram guardar a poltrona no fundo da loja, mas decidi enfrentar porque acreditava muito na poltrona. E ela começou a ser aceita por pessoal de certo nível cultural.” Até despertar a atenção de várias personalidades, entre elas o então governador Carlos Lacerda, que praticamente exigiu que Sergio mandasse a poltrona para um concurso na Itália. Sergio obedeceu, sem muita convicção. Ainda tentou argumentar com o governador.
“Para mim, era uma brincadeira. Disse para ele: ‘Olha, isso aí eu não vou mandar, é um concurso internacional, o pessoal na Europa está fazendo trabalhos de altíssimo nível, não vale a pena, eu só tenho essa peça de madeira.’ Mas ele insistiu muito, e mandamos os desenhos.”
Uma semana depois os organizadores do concurso avisaram que a Mole não poderia concorrer porque já era conhecida. “Para mim, isso já era um diploma, não sabia que a poltrona já era conhecida na Europa.” Sergio, então, fez uma pequena alteração na poltrona, inscreveu no concurso e ela foi aceita.
A Mole acabou conquistando o primeiro lugar no IV Concurso Internacional do Móvel, em Cantu, Itália, em 1961. A imprensa europeia destacou em várias publicações o clima de casualidade produzido pelas almofadas soltas jogadas sobre a estrutura na Sheriff Chair, como ficou conhecida no exterior. A premiação colocou o Brasil em posição de destaque no cenário mundial de design. O nome Sheriff foi dado pelo fabricante licenciado na Itália, que passou a produzir a poltrona.
Sergio acredita que uma das razões pelas quais a poltrona foi premiada veio do fato de ela ser considerada um dos primeiros móveis pós-modernos. “Havia uma acentuação da brasilidade. Era uma peça que revelava facilmente o local onde tinha sido feita. Só podia ter surgido em um lugar onde houvesse muita madeira e muito couro. E havia uma informalidade no desenho”, contou Sergio ao jornal Folha de S.Paulo, em fevereiro de 2006.
Com componentes em madeira, robustos, sensuais, gostosos de acariciar, elaborada na técnica construtiva tradicional, com cavilhas, os almofadões generosos, as correias de couro que formam uma cesta para receber os almofadões também de couro, a estrutura de madeira maciça torneada: assim surgiu a poltrona Mole, que possibilita ao usuário moldar o corpo anatomicamente ao sentar-se com o maior conforto. Esta descrição não define apenas um móvel, mas um projeto-chave do design nacional.
A ideia da poltrona Mole surgiu de um desejo de Sergio Rodrigues de criar um móvel que expressasse a identidade nacional. O embrião da Mole apareceu em 1957 para atender a um pedido do fotógrafo Otto Stupakoff, que pediu um sofá para seu minúsculo estúdio que ia montar no Rio. O próprio Sergio conta como foi o pedido: “Sergio, bola aí um sofá esparramado, como se fosse de sultão, para o canto do meu estúdio.” Segundo Sergio, o sofá seria uma peça de descanso. “Deveria ficar ali para a pessoa ficar à vontade. Mas ele realmente não podia comprar, porque era uma peça bastante cara, feita artesanalmente em jacarandá. Ele acabou pagando a peça fotografando-a para o primeiro catálogo da Oca.”
A carreira de sucesso da Mole começou em Cantu, mas desdobrou-se na Oca. Embora não tenha sido bem recebida no começo, um ano depois do lançamento a loja começou a receber várias encomendas da poltrona, que foi ganhando seu lugar no mercado. Não era a peça mais vendida da loja, mas apresentava qualidades diferenciáveis.
Logo a Mole se tornaria um ícone, talvez a peça de design brasileiro individualmente mais conhecida. O sociólogo Odilon Ribeiro Coutinho afirma que a Mole foi o primeiro objeto de arte “irredutível” brasileiro, que não imitava o colonizador. “É uma síntese admirável do espírito brasileiro.”
Maria Cecília Loschiavo dos Santos, filósofa e historiadora do design brasileiro escreveu: “O desejo imperioso de conceber um móvel que expressasse a identidade nacional levou Sergio Rodrigues a um desenho que burlou os padrões reinantes: aos delgados e elegantes pés de palitos, a Mole respondeu com a grossura e a robustez do jacarandá brasileiro. Isso já era uma grande revolução. Um dos aspectos que se destaca vivamente nesse projeto foi a tentativa do designer de ir ao encontro dos novos hábitos de sentar que então emergiram principalmente certa informalidade muito peculiar do comportamento carioca, que Sergio soube tão bem captar e expressar em seu móvel.”
Nesse sentido, Sergio antecipou a chamada estética da grossura que, posteriormente, foi a base de alguns movimentos da vanguarda engajada nos anos 1960. A partir daí, a “muié dama”, como a chamava o antropólogo Darcy Ribeiro (“ela te abraça, te envolve, você gosta de ficar enroscado nela”), começou a ganhar notoriedade. Outro que adorava a poltrona era Millôr Fernandes: “Foi aí que o talento estético de Sergio Rodrigues veio ao encontro do meu bom senso e exigência de conforto e, inesperadamente, empurrou embaixo de mim a já citada poltrona Mole. Onde não me sentei. Deitei e rolei”, escreveu Millôr. Para ele, a Mole é a versão em móvel de Sharon Stone.
Quem deu o nome para a poltrona Mole foram os próprios operários que a fabricaram. Vem de mole, molenga. Seis anos depois de ganhar em Cantu, Sergio fez uma nova mudança na Mole e criou a Moleca, sem modificações no desenho do almofadão. Era a Mole-Ex ou Mole de exportação.
O criador explicou as versões da sua criatura na entrevista da Folha de 2006: “Há três modelos da Poltrona Mole. A primeira foi criada em 1957 e tinha uma estrutura mais rígida. A segunda versão foi enviada para a Itália, em 1961. Depois veio a versão Moleca. Como não era possível criar uma poltrona da noite para o dia, Sergio pegou a própria Mole e fez algumas variações. Manteve os mesmos pés, a estrutura, e naquilo que era plano e reto, fez algumas curvas. Um mês depois chegou a premiação da Itália e logo após um convite da firma Isa, de Bergamo, para produção em série. A fábrica chamou a Mole de Sheriff. Já a terceira Mole depois foi chamada de Moleca. É desmontável, para reduzir o custo de embalagem e transporte nas exportações, com certos toques coloniais, de madeira e montagem com cunhas.”
O crítico de arte Afonso Luz considera a Mole um marco. “Penso que até a Poltrona Mole ele tem diante de si um desafio da modernidade brasileira, o desafio de estabelecer a sua autonomia de linguagem, de tecnologia, de soluções estruturais locais perante o mundo. Depois de isso se realizar, Sergio Rodrigues vai tendo uma liberdade maior, esse bom humor e o estilo de uma informalidade sofisticada que vão criando uma referência autoral forte, algo todo seu.”
Hoje, a Mole integra o acervo do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, e é até hoje um sucesso de vendas.
Ilustração de Sergio Rodrigues para a exposição "Falando de Cadeira, retrospectiva 1954/1991", realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre 17-12-1991 a 21-01-1992.
Desenho de Millôr Fernandes da poltrona Mole para o catálogo da Oca, 1965.
Sergio Rodrigues na Poltrona Mole, na década de 1990.
Desenho de Sergio Rodrigues, ilustrando a criação da poltrona Mole.