A morte do pai foi durante muito tempo um mistério para Sergio
A morte do pai foi durante muito tempo um mistério para Sergio
A lembrança mais remota que Sergio tinha da infância era a cena do pai e da mãe sentados no sofá que ele enxergava da sua caminha. Era das poucas imagens que guardava do pai, Roberto Rodrigues, assassinado nesta época, quando Sergio tinha 2 anos. Lembra-se também do pai andando a cavalo, vestido de vaqueiro, e a mãe também a cavalo, acompanhando o pai na fazenda de uns amigos da família em Cabo Frio, para onde Sergio foi levado para ganhar peso assim que nasceu.
Roberto Rodrigues nasceu em Recife e veio para o Rio de Janeiro ainda bem pequeno com a mãe Maria Esther Falcão Rodrigues e o pai Mário Rodrigues, avó e avô de Sergio. Patriarca pernambucano do clã dos Rodrigues e jornalista muito conhecido em Recife, Mário trabalhava no Diário de Pernambuco quando teve que se mudar definitivamente para o Rio de Janeiro, por problemas políticos, em 1912, com a mulher e os filhos Milton, Roberto, Mário Filho e Nelson. Mário foi considerado um dos mais combatentes e corajosos jornalistas brasileiros do começo do século XX.
Ao chegar ao Rio, a família foi morar na rua Alegre, em Aldeia Campista, bairro depois absorvido pelos vizinhos Andaraí, Maracanã, Tijuca e Vila Isabel. Já na capital, e depois de uma passagem tumultuada pelo jornal Correio da Manhã, com acusações políticas e uma pequena temporada na prisão, Mário fundou seu primeiro diário no Rio, A Manhã, em 1925, onde era cronista de retórica demolidora. Um dos mais temidos cronistas de sua época, com textos ferinos e brilhantes, Mário revolucionou o jornalismo, mas seu estilo corrosivo acabou por voltar-se contra ele e provocaria uma grande tragédia na família.
Segundo o portal Biblioteca Nacional Digital do Brasil, A Manhã era “um matutino versátil, com doze páginas em tamanho standard, bem montado, com bom uso de imagens (…). Crítico aguerrido, usava linguagem mordaz, panfletária, demagógica, além de bem-humorada e acessível. Confrontava o autoritarismo, as oligarquias e a estrutura política da República Velha, buscando comprometimento com causas populares.” Mário Rodrigues era, portanto, temido pelo jornalismo ousado que praticava e que desagradava a muita gente. No seu tempo, foi considerado um dos mais combatentes e corajosos jornalistas brasileiros do começo do século XX.
No Rio, Mário e Esther tiveram outros filhos e filhas (ao todo foram 14) e Roberto foi desde cedo trabalhar com o pai como ilustrador do jornal. Ele estudara na escola de Belas Artes e era considerado exímio desenhista. A família de Roberto era de artistas e intelectuais. Nelson Rodrigues, irmão mais novo que Roberto, foi do jornalismo à dramaturgia, tornando-se um dos mais importantes autores brasileiros. Mas essa fama não foi testemunhada por Roberto, que morreu tragicamente ainda muito jovem, quando o irmão Nelson tinha apenas 15 anos.
Entre pinceladas e desenhos na escola de Belas Artes, Roberto, homem sedutor, bonitão, bom escritor e ilustrador talentoso, um verdadeiro Rodolfo Valentino da época, apaixonou-se por Elsa Fernanda Mendes de Almeida, que também cursava a faculdade, como ouvinte. Só assim sua família permitiu que ela fosse à faculdade. Neta única de Fernando Mendes Almeida, membro de família católica da sociedade carioca, de intelectuais ligados à Igreja, entre os quais se destacou mais tarde Dom Luciano Mendes de Almeida, Elsa teve que enfrentar a oposição da família em seu namoro com Roberto. A família dela não queria que ela se casasse com o integrante de uma família tão mal vista. Mas a gravidez inesperada resultante da grande paixão selou o casamento dos dois jovens. Sergio não deixou de comentar com bom humor o acontecido: “Não sei dos detalhes, mas consta que eu já tinha sido feito antes do casamento. É uma coisa meio nebulosa.”
Depois de deixar A Manhã, Mário fundou A Crítica, em 1928. Foi nesse jornal que alguns de seus filhos estrearam na carreira jornalística. Quando era dono da Crítica ele foi preso novamente e condenado por uma matéria não assinada em que usineiros pernambucanos eram denunciados por presentearem a então primeira-dama, Mary Pessoa, com um colar de diamantes. Mário cumpriu pena e voltou para o jornal. Seu estilo agressivo permeava a linha editorial do jornal e ele próprio chegou a dizer, certa vez, que “um dia alguém da Crítica ainda levará um tiro”.
Dito e feito. Um dia, em 1929, o jornal publicou uma matéria sobre um rumoroso caso de desquite, num tempo em que as separações conjugais eram tabu. A Crítica noticiou com estardalhaço o divórcio entre Sylvia Serafim e João Thibau Jr. Sylvia não suportou o escândalo e entrou na redação do jornal com uma arma na mão, disposta a matar Mário Rodrigues. Como Mário não estava, ela foi atendida por Roberto, seu filho. Sylvia não vacilou: atirou em Roberto, que morreu três dias depois, aos 23 anos.
Como foi dito, Sergio tinha apenas 2 anos. Elsa não conseguiu ir ao enterro. O avô, Mário, não aguentou a dor da perda do filho provocada pelo tiro que era para ele, começou a beber muito e faleceu quatro meses depois.
A morte do pai foi durante muito tempo um mistério para Sergio. A família de sua mãe apressou-se em afastá-lo dos parentes do lado paterno e desconversava quando Sergio perguntava sobre o pai. A irmã de Sergio, Maria Tereza, tinha apenas 1 ano e a outra, Vera, não chegou a conhecer o pai porque Elsa estava grávida de três meses dela quando Roberto morreu.
Sergio não se conformava em nada saber sobre as circunstâncias da morte do pai. Isso o atormentava e foi o que o levou, aos 17 anos, à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, em busca de informações. Pesquisou incansavelmente nos jornais da época. E conheceu a verdade. A Crítica havia feito inúmeras edições sobre o crime, que se tornou um escândalo em todos os jornais. Sergio ficou revoltado com o artigo que provocou toda a tragédia. Na nota sobre a mulher que se desquitava, havia um desenho que Roberto havia feito, a pedido de Mário, para ilustrar a notícia. Embora se lembre muito pouco do pai, ficou gravada na memória de Sergio uma cena que só veio à tona em uma sessão de psicanálise, muitos anos depois: Sergio foi levado ao velório do pai e colocado em cima do caixão.
Apesar da curtíssima convivência com Roberto, Sergio sempre admirou o traço do pai, firme e elegante, usado em suas pinturas e desenhos, nos telões cenográficos para teatro de revista ou nas ilustrações das matérias do jornal. Mas o que ficou gravado na memória afetiva de Sergio da obra do pai foi, segundo Maria Cecília Laschiavo, “a sensibilidade de flagrar, manusear e representar com o traço fluido aspectos do imaginário coletivo e do gosto pelas coisas da terra”. Sem dúvida, uma herança que deixou para Sergio.
Roberto Rodrigues (pai) em Copacabana, Rio de Janeiro, na década de 1920.
Autorretrato de Roberto Rodrigues (pai) em 1928.
Roberto Rodrigues (pai) com Sergio Rodrigues (1 ano de idade) em sua residência na rua Joaquim Nabuco – Copacabana, Rio de Janeiro, 1928.
Fotocópia da ilustração feita por Roberto Rodrigues para a Revista Para Todos em 1929.
Família Rodrigues na década de 30, de cima para baixo, a partir da 3ª fileira, Milton, Nelson, Joffre, Maria Ester, Mário, Mário Filho, Célia, Stella, Roberto, Augustinho, Elsa, Maria Clara, Irene, Helena, Paulinho, Sergio, Elsinha e Mário Júlio.